"Por que temos tanto medo de ser normais?", questionou a clínica geral inglesa Iona Heath, 69, escritora e ex-presidente do Royal College of General Practitioners do Reino Unido, durante
participação na conferência de abertura do congresso de medicina de família e comunidade, em Cuiabá (MT).
Para ela, o medo está por trás do excesso de diagnósticos e de tratamentos. “O medo aumenta o consumo de assistência médica, o que impulsiona os lucros da indústria da saúde. Muitas vezes, o próprio cuidado médico cria mais medo. Todo mundo tem medo de doenças graves e da capacidade das mesmas em subverter e destruir esperanças e vidas. Por isso o medo, quase sempre não expresso de forma evidente, espreita em quase todos os sintomas, embora esses possam ser triviais”, avaliou Heath, apontando ainda o paradoxo deste comportamento. “Enquanto as pessoas estão vivendo vidas mais longas e saudáveis, elas se tornam cada vez mais temerosas e preocupadas com a saúde. A ansiedade afeta a saúde e impede que as pessoas desfrutem e usem a saúde que têm”, explicou.
A médica destacou também que esta não é a solução e classificou tal comportamento como “uma tragédia”. Para ela, “a medicalização sistemática do sofrimento humano comum se transformou em uma epidemia, que infla ativamente o medo. Problemas pessoais ou sociais são transformados em problemas médicos, como em casos de depressão leve”. Apontando os equívocos de tratar sintomas benignos como doenças graves, ela afirmou ainda que as pessoas que trabalham no sistema de saúde tentam cuidar das pessoas, mas não conseguem fazer com que elas pensem mais em si e em como lidar com os problemas sem remédios. “Não há espaço para lidar com a realidade da morte ou para as realidades solitárias de se viver com doenças ou incapacidades que mudam a vida. Roosevelt declarou em seu discurso de posse em 1933 que a única coisa que temos que temer é o próprio medo”, disse, lembrando que os médicos também estão sofrendo. “Não temos imunidade. Os médicos estão constantemente com medo de cometer erros e de perder um diagnóstico que mudará a vida do paciente. Eles querem acima de tudo não causar danos. Eles têm medo de deixar passar um problema sério e, quando as coisas dão errado, sempre carregarão um fardo de culpa”, afirma.
Para Iona Heath, a indústria da saúde tem um papel crucial nesta realidade. “Há uma enorme quantia de dinheiro que vem a partir da inflação desses medos, muitos dos quais apoiados por boas pessoas que tentam impedir que pessoas morram de doenças horríveis, mas que sucumbem a um grau perigoso de pensamento positivista que, no fim, favorece os interesses das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas”, declarou a escritora, destacando que “o medo é uma oportunidade de negócio”.
Ela alertou ainda sobre o “aumento absurdo” na prescrição de antidepressivos e antipsicóticos. “Karl Max disse que a religião é o ópio do povo. Por séculos, foi assim. Você está mal, mas tem o paraíso, pode tolerar sua pobreza hoje. Agora temos os medicamentos fazendo esse controle, são o novo o ópio do povo. Fala-se pouco sobre os efeitos colaterais dos medicamentos”, pontuou, afirmando que se as pessoas soubessem o risco envolvido, pensariam muito antes de tomar tantos remédios sem necessidade. “É a primeira vez na história que as pessoas estão sendo medicalizadas nesse nível. Vamos ter que esperar um tempo para ver as consequências e os efeitos nefastos a longo prazo disso, não só na saúde humana mas no meio ambiente também. As pessoas jogam os remédios na privada, no lixo, isso tudo vai para os rios, para a terra”, avaliou, ponderando, no entanto, ser favorável ao uso dos medicamentos em casos necessários, como no tratamento de doenças graves e agudas. “As pessoas podem ser salvas por eles. Mas a forma como temos tratado situações normais como se fossem doenças, aceitando limites cada vez mais estreitos para definir diabetes, hipertensão. Tristeza agora é depressão, medo da vida é depressão. Remédios no lugar certo são fantásticos, no lugar errado são perigosos”, ponderou, classificando o exagero na prescrição de remédios como “um problema social”. Segundo ela, “o médico acha que está fazendo o bem para o paciente. Isso nunca vai ser resolvido enquanto as farmacêuticas ganharem tanto dinheiro e a economia depender disso. Se elas vendem muitos remédios é ótimo para a economia, mas é um caminho ruim para sociedade. Precisamos ser cada vez mais cautelosos no uso de medicamentos. Isso é importante para idosos que são as principais vítimas do excesso de medicação. Tomam muitos remédios juntos, há interação entre eles e prejuízos”, explicou.
Apesar dos dados alarmantes, Iona Heath diz ter esperança de que as coisas possam ser feitas de forma diferente. “Deixar as coisas claras, transparentes, é o caminho para mudanças. Todo o sistema financeiro depende hoje da venda de mais remédios, mas isso não pode ir muito longe. Remédios aparentemente são soluções para sofrimentos, perdas, para a morte mas, além de não terem tais propriedades, ao final ainda cobrarão seu preço”, concluiu.